sábado, 29 de dezembro de 2007

Blue Christmas

Deveria ser proibido por lei divina, ou à falta dessa por lei humana, sujeita a contravenção a pesadíssima coima, alguém morrer antes dos 20 anos.
Foda-se, ninguém deveria morrer antes dos 50, ou dos 60, ou de qualquer idade em que tivéssemos quem nos chore. Uma multa exemplarmente pesada deveria ser a pena de quem ousasse violar a hierarquia etária.

O Natal estava à porta quando o coração dela morreu. De forma demasiado brutal, e inesperada. Demasiado tarde para não ter ainda começado a planear a ceia, demasiado tarde para não ter feito ainda a árvore, o presépio e outras decorações natalícias.

Uma mãe ver o filho morrer, é a maior tortura do universo. Pelo menos a maior tortura do universo que é a alma humana. Uma mãe ver o filho morrer de forma brusca, sem qualquer tipo de aviso prévio já apresenta requintes de sadismo. Uma mãe ver o filho morrer de forma brusca, sem qualquer tipo de aviso prévio, na véspera de Natal é o bastante para qualquer ser humano que se preze amaldiçoar Deus, o Destino, ou qualquer nome que quisermos dar ao conjunto de tudo quanto não conseguimos compreender, mas que não obstante, não podemos ignorar a presença, uma vez que percepcionamos o seu efeito em nós.

Mas talvez divago. Uma mãe ver o filho morrer é a maior tortura do universo. Ponto final. O resto para ela já não tem mais importância, são apenas variações que não conseguem, por terríveis que nos possam parecer, servir de artifício agravante a uma dor demasiado inumana.

Naquela noite, a mais fria de todas as noites, enquanto famílias felizes, bem aquecidas e seguras, trancadas atrás de portas hipócritas que não deixavam entrar o frio e a dor alheia, comiam e faziam a festa, acariciavam os seus petizes e sorriam com sorrisos afectados de algum orgulho quando viam a cara feliz que os seus entes queridos faziam ao desembrulhar os presentes, ela sabia que nem toda a palha de todos os presépios do mundo, nem o hálito de todas as vacas e burros do mundo poderiam já aquecer o frio corpo do seu filho. As únicas luzes de Natal naquela noite foram as luzes da ambulância, o seu trinado ferindo o silêncio das ruas desertas e ornamentadas. A cena era pascal, não natalícia. A mãe abraçando o corpo do filho partido, uma cruel Pietá humana. A única canção de Natal foram os seus soluços suaves, no quarto deserto, árias de sofrimento para orelhas surdas. As lâmpadas da árvore piscavam ainda, indiferentes. No presépio, as faces impassíveis do Deus Menino, da Virgem, S. José, Reis Magos e figurantes olhavam-na com olhos frios e desprovidos de qualquer compaixão.


A partir daquele dia, o seu coração morreu. Qualquer fugaz distracção ou alegria que tivesse, todos estes anos passados, acabava sempre da mesma maneira, noites solitárias na cama. Carpe diem, já que a noite é vazia. Qualquer coisa que nos dá prazer, uma festa, um telefonema, um encontro, um livro novo, um cinema, uma música nova…todos esses prazeres eram só patéticos paliativos. Mas o Natal era diferente. Era pior.
A partir daquele dia, a Quadra Festiva perdeu toda e qualquer magia. Não havia Pai Natal, Menino Jesus ou criança sorridente que redimisse o aniversário da maior das perdas. Nenhum redentor lhe daria a mão, lhe sublimaria as feridas reabertas. Ela estava sozinha, presa num mundo contra a sua vontade, e a alegria obrigatória soava-lhe como a maior das afrontas aos pedaços quebrados do seu coração. Ela não estava sozinha, havia pessoas com ela. Essas pessoas eram fortes, eram o seu rochedo, mas, oh!, quão fraco parecia esse rochedo contra as vagas tormentosas da sua muda revolta dolorosa. A aldeia de pescadores não está segura. Se ao menos as ondas fossem ainda mais fortes, fortes o suficiente para arrasar a aldeia. Mas não. A libertação não vinha de lado algum.

Seria menos penoso se houvesse qualquer tipo de esconderijo. Mas não. Não poderia ficar escondida no armário entre 15 de Dezembro e 6 de Janeiro. As festividades de Natal, os presentes, a árvore, a Ceia…tudo estava proibido naquela casa, salvo por um pequeno enfeite alusivo colocado na porta do seu apartamento. Esse enfeite, um pequeno círculo de vegetação plástica a imitar azevinho coberto de neve tinha duas razões de ser. A primeira era servir de memória, uma alusão à vida de alguém que partiu, para quem o Natal foi sempre algo de maravilhoso.
A segunda era o facto de ela, mesmo sentindo-se sozinha no meio da multidão, ou talvez por causa disso, não conseguir ultrapassar uma determinada preocupação pequeno-burguesa sobre aquilo que os vizinhos iam pensar. Ao colocar o enfeite festivo/fúnebre, ela mostrava-se forte, afastando e exorcizando o efeito de pena e compaixão que os vizinhos poderiam ainda ter por ela. “Ela está finalmente a colocar-se em pé novamente”, pensavam, e esqueciam-na, e voltavam para os braços da sua família.
O seu emprego não ajudava. Tinha que fazer atendimento ao público, numa grande loja comercial, por isso ela tinha que sorrir, falsificar sorrisos e mostrar-se alegre e bem-disposta, e desejar “boas-festas “ a todos, e ouvir “igualmente” e sorrir e falsificar sorrisos e mostrar-se alegre e bem-disposta. Uma vez, o chefe de secção achou que seria bonito obrigar os funcionários a usar um gorro de Pai Natal, com o logótipo da empresa. E ela face a mais esta escarradela na cara só pode sorrir, e falsificar outro sorriso, mesmo que o gorro fosse quente e apertado, desagradavelmente quente e apertado. Ela odeia o Natal, mas como fazer que o chefe de secção e a sociedade ocidental em geral a compreendessem?
Esta véspera de Natal, depois do expediente, ela irá colocar uma rosa branca na sepultura do seu único filho e sussurrar:

“Feliz Natal, filhinho. A mamã ainda te ama muito”.


Mas vinde, irmãos. A nossa presença aqui já não é bem-vista. Deixemos estes cenários lúgubres, tão pouco apropriados ao nosso espírito de celebração, e deixemos esta pobre mulher em paz. O voyeurismo não é a mais cristã das qualidades e temos casa e calor e amor, sítios alegres onde ir. Vinde, irmãos, voltemos a casa. Sejam felizes, desfrutem estes dias efémeros, consumam, comam, bebam, excedam-se, e que pensamentos sobre o sofrimento alheio não ofusquem as vossas Festas.

Relembramos os nossos caros clientes e irmãos que a época de saldos começa oficialmente a 28 de Dezembro. Ámen, irmãos!

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