sexta-feira, 4 de abril de 2008

Uma lenda

Existe uma lenda - e as lendas são sempre mais interessantes que a verdade, ou quase – recorrente no tempo e no espaço, com ligeiras e previsíveis variações consoante a Era ou o país ou a pessoa que a conta. Essas pequenas variações não alteram contudo o espírito da lenda, que versa assim:

Existe no mundo uma língua moribunda. Actualmente já só existem duas pessoas capazes de a falar. Por manifesta infelicidade essa língua é a única que ambos conhecem. Isso nem seria muito grave, não fosse o caso de essa língua ser de origem desconhecida e não ter qualquer tipo de afinidade com qualquer outra língua viva ou morta que se conheça.

As poucas pessoas que ouviram essas duas pessoas a falar ficaram maravilhadas. Era uma língua linda, cantante, quase musical, com palavras línguo-labiais, com doce ditongos e nenhum som gutural ou profundo, parecendo composta quase totalmente do que chamamos, no alfabeto ocidental, de vogais.

Ninguém sabia a origem, mas cada qual tinha a sua teoria. O mais normal era, consoante a nacionalidade do narrador, atribuir à língua uma origem que lhe parecesse suficientemente estranha e exótica tendo em conta a sua concepção do mundo, i. e., que contrastasse gritantemente com o que lhe parecia comum e familiar. Dizia-se que era um dialecto africano, ou egípcio antigo, ou assírio, ou fenício, ou mesopotâmico, ou do extremo Oriente, ou uma língua nativa das Américas, ou europeia pré-ariana.

As teorias mais esotéricas e mais interessantes diziam que era a língua dos anjos, das ninfas e sátiros, ou de qualquer entidade supra-humana, ou que vinha de outro planeta ou que era a última reminiscência da extinta língua atlante. Pessoalmente sinto-me mais inclinado para esta última opção, não por ter nenhum facto concreto que fundamente a minha posição, mas simplesmente porque isso me excita mais a imaginação, e afinal não é essa a função primeira das lendas?

Como tal essas duas pessoas não tinham maneira de se comunicarem com ninguém, uma vez – e quando as coisas correm mal correm mesmo mal – que ninguém compreendia absolutamente nada dessa língua. Para piorar as coisas essas duas pessoas nem mesmo se tinham uma à outra, pois não se conheciam e viviam até em partes separadas do mundo. Como não conseguissem falar com ninguém, a conclusão lógica é que também não sabiam ler. Isso limitava ainda mais as suas vidas. Sem nenhuma outra maneira de se fazerem entender, e sentindo as mesmas necessidades básicas – fisiológicas e sociais – de qualquer ser humano, na posse das suas faculdades, tiverem que aprender a língua dos mudos.
Eram pobres, uma vez que as suas dificuldades de comunicação associadas ao analfabetismo involuntário limitavam as suas condições de vida. Entre as suas parcas posses, tinham entre eles cerca de 60 volumes de livros escritas na sua bizarra língua.

As letras em que esses livros estavam impressas eram estranhas também, e diz-se que eram de um alfabeto ignorado e que não correspondia a nenhum que esteja ou tenha estado em uso. Mesmo não sabendo ler, adoravam ver as páginas, imaginando o que significariam. Seria literatura de cordel, ou obras que fariam empalidecer aquelas que são consideradas as obras-primas fundamentais da humanidade? Livros importantes ou temas banais? Ficção ou segredos que resolveriam alguns dos maiores mistérios do mundo, e seriam a resposta às preces do ser humano? Estariam a ver livros de culinária ou a tratados políticos que irradiariam a fome e a pobreza e a guerra?

Como não sabiam, contentavam-se em admirar as letras. Estas eram principalmente arredondadas, mas a principal ideia a reter é que a construção das frases, ou seja, a disposição dos símbolos no papel, ou não seguia nenhuma lógica, ou então tinha regras de métrica e de gramática insondáveis. Por vezes as frases pareciam escritas da esquerda para a direita, outras da direita para a esquerda. Por vezes estavam escritas na horizontal, por vezes na vertical. Em alguns casos as frases pareciam serpentear. Páginas totalmente preenchidas eram interrompidas por espaços em branco de dimensão imprevisível. Talvez fosse espaços entre capítulos. Ou não. A distância entre as palavras e entre as letras nem sempre era igual, também. Em casos extremos, embora raros, as frases chegavam mesmo a aparecer na diagonal, em sentido ascendente ou descendente, e por vezes até pareciam fazer círculos, enrolando-se sobre elas mesmo e sobrepondo-se a outras frases.

Tudo isto eles viam, mas não sabiam compreender. Limitavam-se a admirar frases, escritas por alguém que existiu em tempos. Um dia ambos decidiram contar as letras do alfabeto. Após algum tempo, um chegou à conclusão que o alfabeto tinha 20 letras. Outro, largas centenas. Mas é provável que ambos estejam errados. É que havia variáveis que não tomaram em consideração. Letras maiúsculas e minúsculas, por exemplo. Diferenças de grafia. O facto do alfabeto poder ser iconográfico, por exemplo.
Mas isso não importava muito.
Um dia também eles morreriam e estes livros seriam a única coisa que impediria que a sua raça, varrida da história, fosse também varrida da lenda. As suas mentes eram simples, mas eles percebiam o importante que seria guardarem aqueles livros. Até porque cada um, desconhecendo a existência do outro, considerava-se o último de uma raça à beira da extinção.

Um belo dia, em que o Destino estava especialmente caprichoso – ou quem sabe somos injustos e o Destino não é caprichoso, é frio e racional e não emotivo e segue para cada um uma lógica de natureza inatacável – encontraram-se os dois à mesma hora numa mesma rua de uma mesma cidade em um país que era estrangeiro para cada um deles, e onde ambos se encontravam por motivos bem diferentes.

Não diz a lenda – já se sabe que a lenda não se deixa vulgarizar com detalhes mesquinhos – como aconteceu, mas ambos se reconheceram como falantes da mesma língua e ali mesmo começaram a falar. E a alegria deles aumentava ao verem como o encadeamento do diálogo era melódico e harmonioso. Cada frase que um proferia o outro contestava de uma forma que as palavras de um e de outro se uniam de modo a criar uma melodia que ecoava de forma tão aprazível quanto um suave piparote num cálice de cristal puro. A conversa era alegria e música e frescura e sol e pinho selvagem e Natureza no seu estado puro, intocado, não corrupto.

As pessoas primeiro abrandavam o passo. Começavam a virar-se cabeças. A voltarem para trás. Até que uma pequena multidão, ignorando todo o decoro e conveniência social parou em redor dos dois e começou a olhar fixamente. Ou melhor, não olhavam. Escutavam. Sentiam. E nessa noite muita gente entre os que assistiram, mesmo que não fosse conhecido pelo seu sentido Estético e pela sua inclinação para a poesia, contou em casa como viu dois seres, mais celestes que terrenos fazerem música sem cantar. E como a alegre sinfonia estrelar transfigurou um pequeno e feliz grupo de transeuntes, num arrebatamento hipnótico – tal era a intensidade do prazer sensorial auditivo – que era pouco menos que – à falta de melhor palavra – um feitiço. E nas suas palavras foram contando como esse feitiço fez com que a alma – novamente, na falta de melhor palavra – de cada um abandonasse o corpo, e se fundissem todas numa única alma. E como essa nova alma foi docemente erguida à estratosfera, onde acarinhou nuvens e pegou, com as mãos em concha em mãos-cheias de estrelas que lhe escorriam por entre os dedos como areia. E como no instante seguinte essa alma caiu vertiginosamente e se fragmentou e cada um voltou a ter a sua alma, sentindo-se esmagado mas completo. Tudo numa questão de segundos. E ainda como esse processo se repetiu e repetiu e repetiu continuamente durante a conversa. E como toda a gente pensou que isso se tivesse passado durante anos, embora a conversa tenha durado pouco mais ou menos que 10 minutos terrestres.

A lenda conta – mas isso já não acredito – que essa felicidade foi paga bem cara e que as testemunhas viverem menos alguns anos do que era suposto. Mas mesmo que tenha sido verdade, duvido que alguém achasse que não valeu o preço.

Mas a conversa parou de repente e a magia morreu e cada um voltou ás suas vidas. Os dois falantes da língua moribunda caíram num silêncio opressor, cumprimentaram-se friamente e viraram as costas. Nunca mais se viram. Tudo isso se passou há mais de um século. Dizem…

Não se sabe o que levou dois seres tão especiais a se separarem. Quando não há certezas, abundam conjecturas fúteis. Vejamos as mais interessantes.

Alguns pensam que o facto de cada um estar habituado a um certo silêncio e isolamento fê-los logo perceber que não se sentiriam à vontade num mundo que os com prendesse, mesmo que esse mundo só tivesse mais uma pessoa.
Outros acham que foi o facto de cada um ter percebido que não tinha a honra de ser o único e o último representante de algo que foi, talvez, grandioso.
Outros afirmam que palavras são uma forma de expressão de sentimentos humanos, mas não a única e que meras palavras não criam empatia onde nenhuma existe.
Ainda outros pensam que as duas personagens, desabituados da convivência, não se deram conta que discutir Política, Religião ou Futebol é pernicioso e não socialmente aceitável.
O que é certo é que mais ninguém ouviu aquela estranha língua. E a Humanidade ficou mais pobre.

1 comentário:

Goth Mortens disse...

Meu amigo, que saudosos anos passaram desde a última vez que te comentei. Vejo que o brilhantismo continua a proteger as pontas dos teus dedos. Estou de volta...podemos agora de novo espalhar o terror e, com sorte, o sangue. Aguardo notícias tuas. Espera as minhas.