domingo, 6 de janeiro de 2008

Nota: Budapeste não é à beira-mar

Lembro-me como se fosse ontem. Não que tenha tido alguma importância. Importância alguma. São aqueles nadas, aqueles pequenos nadas que ficam escondidos em alguma sala secreta ou cave escura do nosso cérebro, e que depois, sem sabermos porquê nos vêm assombrar durante alguns dias, e vemo-los claramente como se tivessem acabado de nos suceder, e depois rastejam para o canto sombrio de onde vieram, deixando no ar a possibilidade de voltar, ou não.



Era um fim de Setembro em Budapeste, e eu estava serenamente sentado numa esplanada de um restaurante à beira-mar. Era um dia de semana, talvez 3ª-Feira, talvez 5ª-Feira, e as pessoas continuavam os seus afazeres ou voltavam para casa. Estava um pouco de frio, mas eu sentia-me feliz, nesse doce ócio, de ver o tempo passar serenamente. Bebia cerveja atrás de cerveja. Uma cerveja amarga, escura e belga, e tentava-me concentrar na leitura de “Fenomenologia do Espírito” de Hegel, quando ouço alguém chamar-me em tom jovial.

- Então, Y., ´tá tudo fixe contigo?

Levanto a cabeça para uma figura alta e esguia, mas o sol crepuscular é muito forte e fere-me os olhos. Esfrego os olhos e por instantes não consigo discernir o meu interlocutor. A voz é-me familiar, alegre e arrastada, meio rouca a sugerir catarro, excesso de fumo. Mas a cara é-me estranha por uns segundos-eternidades. Finalmente um sorriso circunstancial de reconhecimento assola-me a minha até então vazia face.
Respondo:

- Oi, não te estava a reconhecer.

Era Herodes.

Herodes sentou-se ao meu lado e mandou vir uma enorme caneca de cerveja bávara. Petiscamos caranguejos e ostras vivas. Limpo a boca a guardanapos de papel engordurados. Sente-se um cheiro forte e acre a limão.

- Lamento pela tua irmã, Y..

Nada digo. Encolho os ombros e agradeço.

- Passaram-se quê? Dois anos!?

Herodes apresentava-se impecavelmente barbeado, salvo pelo seu bigode e fina pêra prateadas. O longo cabelo estava preso atrás. Ele usava casacão de ganga azul e calças jeans negras. Uma t-shirt branca com um logótipo que demonstrava ser uma contrafacção óbvia da Adidas. Usava All-Stars totalmente negras. O porte era majestoso, a indumentária menos. E eu não pude deixar de pensar que ele era um monarca sem coroa, um rei-nada. Metallica soa-me na cabeça.

- Por aí.

- Ela sofreu muito?

- O bastante para a sua morte ter sido um alívio para ela mesmo e para todos nós.

- “Wherever she is, I hope she is singing now”, como diria o gajo dos Smiths.

- I don’t.

E o assunto morreu ali.

- Estou preocupado, Y.. Dois gajos brancos e um preto disseram-me que estava para nascer um puto que iria tornar-se rei dos judeus em meu lugar.

- E…?

- E como tal, decidi mandar matar todos os bebés nascidos a 24 para 25 de Dezembro. Antes jogar pelo seguro.

Rio-me.

- És um ponto, Hero. Um grande, grande ponto. Vais mandar fazer um massacre de inocentes, vais matar dezenas, centenas de crianças, no fundo o que tu estás a fazer é matares a inocência e o futuro e a esperança da tua nação, e para quê? Para manteres uma falsa ilusão de poder? Não te apercebes que não és mais do que um joguete nas mãos dos romanos, um monarca fantoche vassalo de César?

Herodes baixou os olhos.

- E contudo, a ilusão de poder é o que me mantém vivo.

- Oh Herodes, porque é que não te fodes?

E assim dizendo, levantei-me e deixei-o sozinho para me pagar a conta.

Foi a última vez que vi Budapeste.

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