sexta-feira, 2 de março de 2007

Alienação


Júlia morrera havia já 5 meses, e Roberto ainda estava na Fase de Negação.
Não que ele alguma vez fosse sair dessa fase. Tentar convencer-se disso era um exercício de futilidade; tão vão, tão absurdo supor que ele algum dia aceitaria a sua morte como supor que ele se convenceria que as estrelas deixariam de alumiar a noite ou que o sol não nasceria no horizonte longínquo ao dia seguinte.

Os últimos três meses de vida de Júlia foram dolorosos e agonizantes; tal foi o seu martírio que todos deram graças quando a sentença se cumpriu mais cedo do que o planeado; algures a meio desses três meses, o espírito de Roberto quebrou-se… deixou de a ir visitar, deixou de se interessar sequer por ela, porque aquela não era a Júlia; aquela velha moribunda que nunca iria chegar aos 30 anos, aquela aberração-Júlia que gritava de noite por um fim Fim que a libertasse das farpas que pareciam querer rasgar o seu corpo desde o interior, não era, nunca foi nem nunca seria a sua Júlia, a Júlia que ele conheceu, embriagada de vida, ávida de amor, vivendo cada dia, alegre ou triste que fosse como o último dia. Metafísica!

Quem era aquele esqueleto que definhava dia a dia? Que morra depressa aquela aberração-Júlia! Que morra depressa e para o Diabo com ela!

Como uma criança que se esconde debaixo dos cobertores no seu quarto escurecido para evitar ver o espectro que o espia desde a soleira da porta, assim fez Roberto face à eminente morte de Júlia. O seu espectro chamava-se Realidade.

Nos últimos dias, ela já nem conseguia falar, mas disse quem a viu que os seus olhos só ansiavam ver Roberto uma vez mais. Não precisava de lhe tocar, não precisava de o escutar. Precisava tão-somente de o ver com os seus olhos quase vítreos, por um segundo que fosse, e isso, e somente isso lhe daria Paz. Mas a Paz nunca veio. Só o fim do sofrimento.

Não esteve presente no seu funeral. Estava ocupado a embriagar-se em casa. A celebrar o fim da grotesca caricatura de Júlia, para sempre presa à Terra. Por volta das 4h da manhã, caiu vestido em cima da cama e dormiu 6 horas. Durante essas 6 horas ele viveu num mundo em que Júlia era e não era. Não a conseguia encontrar em lado nenhum, mas sentia-a por todo o lado. Júlia era o planeta. E o ar que respirava era Júlia, e a fina areia argentina sob seus pés era Júlia, e a límpida água do lago turquesa que ele bebia era Júlia, e o lume da fogueira que aquecia a gélida noite Júlia do planeta Júlia era Júlia. E Roberto bem desejou não acordar mais; viver em coma no planeta Júlia e conhecer a felicidade que só se sussurra e só suspeita haver atrás das estrelas. Mas um vento gélido ceifou tudo á sua volta; levantou a terra, tornou o ar difícil de respirar, apagou o fogo e atormentou a água; e o vento falava-lhe em silêncio, mas escutava nele a gutural voz da aberração-Júlia; que lhe dizia:………..
Acordou a gritar e nunca mais tocou em álcool.

Nas décadas seguintes, Roberto não vivia neste mundo mais do que o absolutamente necessário.
Tão-somente realizava por dia as funções absolutamente necessárias para assegurar a sua parca existência. O resto do tempo não estava cá. Estava noutro lugar, onde Júlia não era o Tudo do seu pesadelo/velório, mas era Algo. Era a Júlia-Júlia, a Júlia humana e jovem que conhecia, sempre bela, sempre fresca, sempre viva. Metafísica!
Sim, essa era a boa, velha Júlia. Ele fechava os olhos e ela estava sempre lá. Com a cavalgada furiosa dos anos, Júlia tornou-se mais do que uma memória, tornou-se um Ideal.
Ela era toda a Transcendência feita uma imagem no seu cérebro. Roberto nem sequer se conseguia lembrar se tinha sido seu amante, seu marido, seu amigo, seu irmão, seu pai ou seu filho. Nem isso mais interessava, se é que alguma vez interessou. É possível, mesmo provável que Júlia nunca tivesse sido tão bela nem tão jovem como ele a cristalizou no seu cérebro; ele começava mesmo a duvidar que ela alguma vez tivesse sequer nascido; talvez tenha sido uma história que tenha ouvido, ou que imagine que tenha ouvido quando era criança; talvez ela pudesse ter existido, mas que nem sequer se houvessem conhecido a fundo; talvez só algumas palavras de circunstância, alguns olhares cúmplices a prometer o que não se cumpriu; ou talvez tivesse sido mesmo feliz com ela, 10 anos ou 10 minutos…isso nada interessava.
Quando tentamos criar no nosso cérebro uma imagem representativa de algo que dizem ter sido magnífico, que pode ter existido ou ter sido só uma lenda, pintamos sempre um quadro com as cores mais metafóricas e belas da nossa imaginação. A Atlântida! Via Júlia como sempre quis ver Júlia, como as torres prateadas e arquitetónicamente impossíveis do continente perdido. A Júlia já não era a Júlia-Júlia, nem nunca foi a aberração-Júlia. Era a Júlia-Idéia.
Até que essa imagem se desvaneceu, e o próprio nome deixou de ter significado. Passou a ser um conceito que damos por certo mas ao qual não conseguimos sequer começar por atribuir uma imagem; nesse dia finalmente destapou os olhos e o espectro ainda lá estava, mas já não sozinho.

Ninguém esteve presente no seu funeral, porque ninguém esteve presente na sua vida. E por certo ninguém o transformou num Ideal.

2 comentários:

Sérgio Mayor de Andrade disse...

Nota: No fim de escrever esta pequena divagação narrativa, reparo que as iniciais dos protagonistas são R&J, tal como Romeu e Julieta. Os nomes foram seleccionados de forma totalmente aleatória, pelo que se trata tão somente de uma coincidência irrelevante, não um lugar-comum desprepositado, à laia de homenagem ao Grande Bardo.

Unknown disse...

estamos esclarecidos :)