domingo, 29 de abril de 2007

Quino

Joaquín Salvador Lavado, Quino


Encontrava-me a arrumar alguns livros infantó-juvenis, bandas desenhadas e livros de textos reminiscências dos meus dias puros e despreocupados de infância, quando o meu coração se partiu por não conseguir encontrar os livros da Mafalda.

Não seria nada de muito cruel, não fora o caso desses livros estarem autografados pelo próprio Quino, o genial cartoonista argentino, que um dia de 1984 esteve na Livraria Bertrand do Porto, para uma sessão de autógrafos, a que eu obriguei a minha família a levar-me.

Recordo-me como se fosse hoje, eu ainda não tinha 9 anos e já devorava esses livros e outros de BD um pouco menos rebeldes e contestatários. Ele virou-se para mim e perguntou “Ya?”, espantado como um fedelho já conseguia ler – e compreender, acrescento eu – as tiras da sua personagem principal.

Se hoje em dia eu tenho preocupações sociais, consciência política e contestatária e aprecio humor corrosivo, inteligente e de intervenção, eu devo-o à minha família e também a várias revistas e livros de humor que li durante a minha infância/juventude.

Naqueles tempos, eu lia três bandas-desenhadas de três países americanos diferentes em que as personagens eram um grupo de crianças.

A turma da Mônica do Maurício de Sousa, A Mafalda do Quino e os Peanuts de Charles Schulz. Desses três, foi sempre da Mafalda que gostei mais. Eu aprecio o traço e o legado de Schulz, mas nunca gostei muito do Charlie Brown, nem do mundo desprovido de adultos mas cheio de angústia existencial em que ele, o Snoopy e o resto dos seus amigos se movimentavam. Charlie Brown era um perdedor e sempre o será. Schulz era muito negativista, até para mim.

Como contraponto, eu gostava muito da Turma da Mônica, mas sempre tendo sido uma pessoa pessimista e amarga, em breve fiquei farto daquele mundo açucarado e cor-de-rosa que me tentavam impingir. Aquela pureza infantil era tão falsa, tão artificial. O mundo de Mônica não é deste mundo.

Já o mundo de Mafalda…ahh, esse era outra coisa. O mundo de Mafalda era o nosso mundo, na década de 1960/1970. O Vietname, os Beatles, os Stones, o movimento hippie, Cuba, a Guerra-fria, Chile… Mafalda era a crítica mais mordaz, mais ácida da América Latina e da Terra nos idos de 60 e 70. Mafalda era a voz do povo da América do Sul, do 3º Mundo, dos não alinhados, dos inconformistas contra o imperialismo capitalista do Ocidente e a repressão totalitarista do Bloco Soviético.

Mafalda, que tinha problemas com as autoridades, que tinha sempre algo a dizer que provocava ataques de nervos à professora, e aos pobres pais, representantes do mais puro conformismo e acomodamento da classe média latino-americana dessas décadas.

O seu irmãozinho Gui, que representava as gerações vindouras era para Mafalda um espelho aumentado da sua própria contestação.

Susanita, a maior amiga de Mafalda, e também a sua maior inimiga, representante de tudo que Mafalda despreza. O conformismo, a mentalidade tacanha, os sonhos limitados de se casar e ter filhos, a hipocrisia, a fofoquice, o apunhalar pelas costas.

Filipe, o sonhador Filipe, cujos sonhos e ambições dispensam o estudo e o trabalho pesado.

Miguelito, o descendente de italianos fascistas, que não conseguia disfarçar por vezes a sua admiração por Il Duce.

Manolito, o descendente de espanhóis, filho do dono da mercearia e a personagem mais materialista e trabalhadora, e menos inteligente e liberal (a ideia preconceituosa sobre as ex-metrópoles) do grupo.

E Liberdade, a amiga baixinha de Mafalda, cuja metáfora era visivelmente óbvia.

Todos eles com sentido crítico, mas sem nunca se esquecerem de ser crianças, de brincar, de ir a escola. Mafalda y sus amigos são uma voz adulta, mas são crianças. Se Charlie Brown tivesse preocupações para além das existencialistas, e se ao mesmo tempo vivesse por vezes no mundo da Mônica…seria a Mafalda.

O capitalismo é um círculo engraçado. Mafalda começou como uma figura publicitária para electrodomésticos, tornou-se depois uma figura incontornável do humor de intervenção, e por fim acabou, após ser descontinuada pelo seu autor, como figura de merchandising em figuras de plástico, cartões, postais, posters, e outros produtos. Começou por ser uma figura publicitária do capitalismo, tornou-se feroz crítica da sociedade de consumo ocidental, e no fim acabou paradoxalmente por se tornar (um bocado como outra grande figura argentina, Che Guevara) um ícone dessa mesma sociedade de consumo.


Atrás, Esquerda-Direita: Miguelito, Susanita, Mafalda, Felipe, Manolito
Frente, Esquerda-Direita: Liberdade, Gui

Mas este post é sobre Quino. Quino abandonou Mafalda, porque se queria tornar cartoonista a tempo inteiro. Mas qual Viktor Frankenstein, viu que a obra era maior que ele. E Quino nunca teve tanto êxito como cartoonista. O que é pena. Os seus cartoons são deliciosos. São pequenas amostras cheias do humor inteligente que sempre o caracterizou, mas desta feita já sem um cunho interventivo – excepto ao satirizar a classe média e os seus hábitos pequeno-burgueses – antes são jóias gráficas (com muito, pouco, ou nenhum texto) do nonsense ou de um pensar existencialista quase Kafkiano.

Salud, Quino

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