domingo, 15 de julho de 2007

Al


Um belo dum sábado à tarde, lá ia eu a vadiar pela Rua de Santa Catarina abaixo e acima quando de repente olho para a frente e exclamo bem alto (pois, qual vilão de Emílio Salgari, eu não tenho monólogo interno):

“Mas que vejo eu? Parece…sim, é! Um posto avançado de Jesus!”

E lá estava um palanque a bloquear a rua de tráfico pedonal a anunciar a Igreja das Testemunhas do Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo dos Antepenúltimos Dias e Pentecostes de Jeová. A táctica de abordagem é sempre igual. Eis-me cercado por dois ou três inevitáveis miúdos americanos, na casa dos 20 e muitos, altos e espadaúdos, cabelo louro impecavelmente cortado, olhos de expressão vazia de uma cor Oceano Pacífico, não raras vezes atrás de óculos de pequenas lentes circulares e aros dourados, camisa branca sem mangas e sem a menor pinta de suor, com uma etiqueta a anunciar o nome deles (por alguma desarmante razão, o primeiro nome destes caralhos é sempre “Elder”), gravata de cor sóbria, sapatos e calças negras, na cara um sempr´eterno sorriso peroláceo, de uma alvura impressionante, de orelha a orelha. Na cara uma expressão de felicidade total e patética, marca registrada de inebriantes sessões de lavagem cerebral. Enfim, uma verdadeira fantasia para qualquer rapariga adolescente de 14 anos…ou para qualquer bicha de 54.

Virando-se para mim, eles começaram: “Hola, señor”, ao que eu respondo: “Vade retro e caralhos vos fodam, que eu sou um discípulo de Baphomet". Com expressões que iam do incrédulo ao horrorizado…Não, esperem. Eles só têm uma expressão. Lá ficaram com os seus olhos radiantes e os seus sorrisos generosos.

Mais tarde, estava eu por volta do Campo 24 de Agosto quando vejo dois rufias a bater no que eu identifiquei ser um dos Elders, que provavelmente se tresmalhou do rebanho. Meu coração ardeu de fúria ao testemunhar que uma tal injustiça se estava desenrolando. Usando meus músculos fartos e bem torneados, logo apliquei uma porrada de campeonato aos dois trafulhas, que logo bateram em retirada. Ergui o meu punho no ar, e como me sentia medieval (mas passou-me logo) assim bradei: “Fugi, vis poltrões, ou conhecereis o gosto do fio da minha lâmina toledana.”

Ajudando o Elder a levantar-se perguntei-lhe se ele estava bem. :
“You ok, ma nigga?”
Disse-me que os restantes irmãos já se haviam retirado, mas ele, alma nobre e solitária que era, decidiu contra os conselhos fraternais e o bom senso continuar a evangelizar os selvagens, tendo chegado perto de dois tratantes a quem disse: “Vim-vos trazer a palavra do Senhor”, tendo eles dito: “A palavra do Senhor é a pasta já para cá!” ao que ele lhes disse que a sua única riqueza era Jesus. Então, usando eles do seu livre arbítrio para cometer injustiças, dedicaram-se a esmurrá-lo até eu o ter salvo.

Posto isso, ia eu despedir-me quando ele disse-me que, de acordo com a sua fé, como eu lhe tinha salvo a vida, ficava responsável pela sua protecção, tornando-se ele meu escravo. Ao que eu respondi que não, que sou muito macho e que não aprecio sobremaneira insinuações homo-eróticas. Mas ele disse que era simplesmente um amor espiritual, ao que eu acedi. Perguntou-me o meu nome, disse-lhe que era Sergy, e assim se apresentou ele:
“If you’ll be my bodyguard, I can be your long lost pal. I can call you Sergy, and Sergy when you call me, you can call me Al.”
Suspirei, resignado. Uma vez que estava a escurecer, perguntei ao Al se não queria ir comer qualquer coisa, e depois ir à Ribeira para uma noite de putas e vinho verde. Suspirou, resignado e lá fomos.

E lá estávamos nós num qualquer tasco da Ribeira em frente a gigantescos copos plásticos de melicioso (delicioso como mel) néctar etílico dourado da SB a quase €5,00 a unidade de 0,75 litros. Disse ao Al para me contar a sua vida.

Al disse que era um filho de Utah, estando destinado como a maior parte dos seus habitantes a ser um mórmon. Mas, lá pelos seus 15 anos deu numa de jovem rebelde, e quis fugir para além dos sufocantes limites da sua little home town, com a sua main street, a sua drugstore, a sua high school…e mais ainda, quis ir para além dos ainda mais sufocantes limites da mentalidade da sua família e da sua town. Deu-lhe o que é chamado Síndroma Axl Rose/John Holmes. Quis fugir da vida pequena que parecia fadado a viver. Quis atravessar o enorme continente que é o seu país natal, ir para a costa leste, viver na Village, ser um poeta anarca-gay. Ou ser um baixista de uma banda rock indie experimental. Ou então ir para LA, ser artista em filmes porno, ou ser baterista de uma banda de trash metal (ou na pior da hipóteses, de speed metal).
Fugiu de casa, subiu para um comboio de mercadorias clandestinamente, e lá encontrou um vagabundo que o re-introduziu no mundo cristão, apresentando-o à obra de John Christiansen, fundador da Igreja das Testemunhas do Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo dos Antepenúltimos Dias e Pentecostes de Jeová. Nessa mesma noite o vagabundo violou-o e ele nunca mais o viu.

Segundo Al, John Christiansen nasceu no Minnesota, em 1877, o filho de uma prostituta de origem sueca e de um desconhecido que ele sempre afirmou ser o Espírito Santo. Em 1901, aos 24 anos, sem educação, qualificações, emprego, amigos ou futuro, com uma inteligência bem abaixo da média, foi posto fora de casa pela sua mãe. Sem saber o que fazer, decidiu rumar o mundo e tornar-se profeta. Encontrou outros com ainda menos educação, ainda menos qualificações, ainda menos empregos, ainda menos amigos e ainda menos futuro e convenceu-os que era a 2ª Vinda de Jesus Cristo. O culto expandiu-se para além dos limites do estado. Não se sabe muito mais de John Cristhiansen, e provavelmente teria ido esquecido totalmente, não fosse a desarmante coincidência de ter morrido aos 33 anos em 1910, condenado à morte por um tribunal do Alabama pelo crime de ser um “niggerlover”, ao afirmar que os negros têm alma, já que alguém precisa de trabalhar para nós no Céu.

Al disse que a Igreja das Testemunhas do Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo dos Antepenúltimos Dias e Pentecostes de Jeová tem dois livros. E colocou-os em cima da mesa. Um era um livro fininho encadernado a couro negro onde se lia “Bíblia da Igreja das Testemunhas do Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo dos Antepenúltimos Dias e Pentecostes de Jeová” a letras de ouro. Outro um paperback muito grosso onde se lia “Livro de John Christiansen”. Na capa, num campo dourado pelo sol, uim leão copula ferozmente com uma ovelha.

A Bíblia da Igreja das Testemunhas do Reino de Nosso Senhor Jesus Cristo dos Antepenúltimos Dias e Pentecostes de Jeová é igual à Bíblia cristã tradicional, mas excluindo toda e qualquer referência a degredo, sexo e violência. Por isso é que o Antigo Testamento quase não existe e nos Evangelhos a acção salta directamente da Última Ceia para a Ressureição.
O Livro de John Christiansen tem 28 versículos divididos por 500 páginas. O primeiro diz só “Deus é o Senhor”. O 2º versículo diz “Jesus Cristo é o Senhor” e o 3º diz “John Cristiansen é o Senhor”. Os restantes 25 versículos alargam-se por 497 páginas e são estranhos pois parecem tratar-se de um esboço de um conto infantil cheio de erros ortográficos e incoerências narrativas sobre uma menina que perdeu o seu cãozinho na Nova York do início do século XX. Al diz que só os iniciados nos mistérios de Christiansen conseguem entender o significado oculto nessas linhas.

Al perguntou-me se era verdade que eu adorava Baphomet. Eu disse “È grupe, só sei que é um gajo com altos cornos. Isso é o que eu costumo dizer a vocês, seus brochistas, para me deixarem em paz.” Ele perguntou-me se eu não acreditava em Deus, e eu disse que a questão assim é muito redutora. Eu acredito em Deus, mas Deus não acredita em mim. Ao que ele me perguntou se eu não achava que Ele nos amava. “Não sei, Al, acho que ele simplesmente deixou de se importar. O problema que eu tenho convosco é que eu não suporto a total brancura, a total pureza, a total inocência. Algures na vida perdi o meu caminho e ganhei um amor obsessivo pelo lado Griz da vida. Não sou o que se diz uma má pessoa, pelo contrário, tenho níveis elevados de tolerância, caridade e piedade. Mas eu gosto de degradação. Gosto de ambientes de degradação moral…humana…natural…arquitectónica…o meu organismo…

Desmaio e racho a cabeça nas pedras da calçada.

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